UMA VIAGEM INFORMAL AO
TEOREMA DE GÖDEL
ou
(O preço da matemática é o eterno matemático)
Ricardo S. Kubrusly
IM/UFRJ
Introdução
O teorema de Gödel é talvez o mais surpreendente e o mais comentado
resultado matemático do século. Com certeza, é o mais
incompreendido e um dos únicos teoremas que se presta a
discussões filosóficas acaloradas e imediatas. Não é
preciso estudá-lo a fundo para notar a semelhança entre suas
conseqüências e a de algumas máximas da física moderna
ou mesmo da metafísica, onde, diferentemente da matemática, a
liberdade interpretativa empresta um delicioso sabor de trapaça a
qualquer verdade enunciada. Da mesma maneira que um cidadão educado
é capaz de lançar mão dos resultados da mecânica
quântica e/ou relativística para inferir, logicamente é
claro, quase que qualquer extravagância, transformando as árduas
noites de Dirac, Schröedinger, Bohr, Einstein entre outros, numa
comédia esotérica de fazer frente a qualquer ilusionista do
interior, o teorema de Gödel, ou melhor, suas conseqüências,
também permitem interpretações, quanto às
possíveis, ou quem sabe prováveis, incertezas que eventualmente
desestabilizem a sempre certa e poderosa matemática. Então, a
matemática também erra e gera falsidades de suas tão
eternas verdades? E 2+2, continua a ser igual a 4 depois do teorema de
Gödel, ou, dando razão aos poetas, não poderia ser
reinterpretado sob um novo olhar pós-modernista? A incompletude e a
consistência não seriam provas irrefutáveis do poder de
influência dos cristais & florais no psique dos adolescentes? E por
aí vai...
Brincadeiras a parte, é interessante observar as semelhanças
entre matemática e outros conhecimentos mais, digamos, maleáveis, que
este famoso teorema permite estabelecer. É raro ver o cidadão
educado curioso a respeito de algum teorema matemático. Nem mesmo o
famosíssimo "último teorema de Fermat" que passou mais
de trezentos anos desafiando o talento e a engenhosidade do raciocínio
abstrato da humanidade, desperta, a não ser entre os especialistas,
tanta curiosidade e suscita tanta fantasia quanto os resultados de Gödel.
Cabe a nós, matemáticos de todos os credos, aproveitar o momento
e a deixa, para iniciar um trabalho de divulgação dos nossos
resultados e principalmente, das nossas metodologias da razão,
estabelecendo um canal de comunicação entre a matemática e
a sociedade e, a exemplo dos físicos, nos tornarmos conhecidos e
desejados abrindo um pouco mão das nossas intoleráveis
idiossincrasias. Que mal há em brincar e/ou mesmo distorcer o saber para
popularizá-lo? Que benefícios reais alcançamos em nos
manter, e à nossa matemática, sempre distantes de todos e de
tudo? Nenhum e nenhum. Não há mal em brincar e nada ganhamos em
não brincar e em nos afastar sempre do saber e da cultura vigente,
além da ilusão infantil, típica do século XVIII, de
sermos seres superiores e sérios. E sérios não brincam. A
Física brinca e nós a criticamos e a menosprezamos como se o seu
saber ficasse impregnado pelo uso popular que deles possam fazer. E se ficar,
qual o grande problema? Será que a Mecânica Qüântica
passa a ser a brincadeira incerta que com ela se faz? Não, com certeza,
mas ganha sim, uma posição de destaque na mente do cidadão
educado, que mesmo sem a capacidade de compreendê-la totalmente (por ter-se voltado para outras atividades) passa, por obra do desejo a contrabandear
suas verdades, se enriquecendo e enriquecendo de volta a todos nós e
à própria fisica. Que mal há nisso? "Pour
delicatesse j'ai perdu ma vie" e por arrogância, também se
perde, muitas vezes, a chance de aparecer, de ser e de realizar o verdadeiro
destino matemático, que é mais o de dançar à luz
do mundo que transforma, do que o de espreitar, entre paredes, as parcas
sombras que se perdem.
O objetivo destas notas é o de visitar a prova, mais do que o teorema,
de Gödel, numa tentativa de apresentar e discutir suas principais
idéias e conseqüências para a matemática e para a
sociedade. Acreditamos que o nosso século se tornará conhecido
intelectualmente pelas verdades descobertas por Gödel, que nos marcam
muito além do sentimento de fracasso que suas
considerações finais possam gerar, resgatando a
condição humana, há muito perdida dentro da
matemática, que por se pensar divina, fabricou o sonho ingênuo de
ser completa, consistente e capaz de desvendar o infinito.
O construtor de Paradoxos
O enigma.
Nosso personagem sabia, estava consciente e, portanto, consciente de sua
consciência e evitaria qualquer ato desnecessário de bravura
inconseqüente. Não acabaria daquela maneira no aglomerado da
prisão onde suas idéias o trouxeram, nem seria salvo pela bondade
e eficácia nunca, posto que há muito que já nelas,
desacreditava. Janela alguma se entreabriria por entre os rasgos de
fluorescência que tornavam o claustro uma cozinha abandonada por mestres,
camundongos e iguarias; só lhe restavam as portas: duas iguais em tudo e
em tudo diferentes. Uma lhe devolveria em círculo descendente à
mesma cela, igual mas diferente, já numa nova versão do abismo,
sem portas e opções alguma, onde deveria, por gosto ou pela sina estranha afeta aos mais estranhos, lentamente desaparecer em
esquecimentos. A outra lhe empurraria em espiral de dúvidas ao mundo fecundo das incertezas, de onde vinha, e onde se acostumara a desmontar
relógios: seu único e verdadeiro motivo para descobrir a porta certa.
Mas como, se seus dois únicos carcereiros,
gêmeos idênticos, marcados simetricamente pela história, se
diferenciavam apenas do ponto de vista da palavra a que cada um se colocara
diante de tudo e dos acontecimentos. Era como se um deles vivesse , como
nós (?), sobre a superfície de uma esfera gigantesca, onde tudo
é plano ao percebê-lo e o horizonte se abre em mares verdadeiros e
o quase que se consegue é a verdade afeta, ou intrínseca
não sei bem, a cada objeto. O outro, do outro lado da esfera, iluminava
a escuridão com o próprio medo, seu horizonte lhe esmagava em
mares nunca, não havia o quase, e portanto a ilusão do
verdadeiro, o certo não dava lugar aos erros de adubar verdades, que
nunca cresciam na imensa ótica de rementir somente o simples não
de cada objeto.
As regras eram claras: uma só pergunta a apenas um dos carcereiros. Como
encontrar a letra certa, a porta que o traria de volta a vida, com uma
só pergunta a apenas uma de duas tão diferentes visões
dos acontecimentos. Um só lhe responderia a verdade, o outro, só
mentiras.
Qual porta devo tomar?
, não é a pergunta a ser feita, pois o verdadeiro lhe indicaria
uma e o mentiroso a outra.
Qual não devo tomar?
, também não resolveria a questão. Para encontrar o
caminho certo, teria que cruzar informações e perguntar a um
sobre o que o outro lhe responderia.
Se eu perguntasse ao outro carcereiro qual a porta que me liberta, o que ele me
responderia ?
Agora sim, pois se a pergunta tivesse sido feita ao verdadeiro ele diria a
verdade sobre a mentira do seu gêmeo carcereiro e me apontaria, como
este, a porta errada. Se, por outro lado, perguntasse ao mentiroso, ele diria a
mentira sobre a verdade do parceiro e me indicaria, diferentemente deste,
novamente a porta errada. Bastaria escolher, em qualquer caso, a outra
porta-palavra, para voltar às dúvidas da liberdade a que me destino.
O verdadeiro, o falso e o paradoxo:
Este velho enigma pode, e deve, ser analisado da seguinte maneira: ao cruzar as
perguntas entre os dois carcereiros, construímos um algoritmo que levou
o verdadeiro a mentir, ao ser verdadeiro na mentira de seu companheiro. Esta
mesma construção também levou o mentiroso, o sempre
mentiroso, a dizer a verdade, pois muito embora tivesse indicado diretamente
a porta errada, construíra ao mentir sobre o parceiro verdadeiro o
caminho da porta certa sem deixar margem a dúvidas.
Se ao invés de portas, quiséssemos descobrir quem era quem entre os dois gêmeos da palavra, o verdadeiro ou o mentiroso, bastaria
seguir o mesmo algoritmo com as devidas modificações.
Perguntaríamos:
Se você fosse o outro, quem você apontaria como sendo aquele que
só diz a verdade ?
Observamos, que diferentemente do caso anterior das portas, quando
buscávamos uma resposta única para os dois carcereiros, o que
queremos agora são duas respostas diferentes, pois queremos diferenciar
os dois para saber quem é quem. Observe que se dirigíssemos ao
verdadeiro a pergunta acima, ele nos responderia
"Sou eu"
, já que esta seria a resposta do mentiroso; mas ao perguntar ao
mentiroso ele diria
"É ele"
que seria a mentira sobre a resposta do verdadeiro.
Aqui, chegamos ao ponto crucial na tentativa de construir um paradoxo. Quando
o mentiroso diz
"É ele"
apontando o outro como o verdadeiro, está, de alguma maneira, dizendo de si próprio:
"Eu sou o mentiroso"
que em si é uma verdade, neste contexto, que dinamicamente se
auto-contradiz, gerando um paradoxo, uma antinomia equivalente a
"Esta afirmação é falsa"
que será verdadeira se, e somente se, for falsa.
A construção do paradoxo através do enigma nos mostra
quão perto estamos da auto-contradição ao articular perfeitamente os preceitos lógicos. Apesar de termos resolvido o enigma das portas através de um raciocínio informal, não nos
distanciamos da lógica clássica formal em nenhum instante.
Será que a precisão da lógica, e aí
poderíamos dizer também, da matemática, pois nesse
nível ambas estão diretamente relacionadas, poderia nos levar a auto-contradições? Ou seja, será que um sentido
auto-contraditório poderia ser construído por etapas, todas
não contraditórias?
A desconstrução do paradoxo.
Para tentar responder a estas questões, vamos primeiramente desmontar
em pedaços a auto-contradição contida na frase paradoxal
acima, decompondo-a em duas afirmações livres de
contradição, mantendo no entanto o paradoxo na
interdependência das duas afirmações. Podemos dizer:
"A afirmação abaixo é verdadeira"
"A afirmação acima é falsa"
que através da sua articulação natural, exprime o mesmo
ciclo fatal do paradoxo inicial, mas que é composta de frases que em si
não são, nem sugerem contradições. É claro
que são ambas frases que declaram certezas sobre uma outra frase
desconhecida, numa estranha confiança quase suicida. É esta
confiança exacerbada, em última análise, que devolve o caracter
paradoxal a articulação das frases acima.
A tentativa de diluir a contradição dos paradoxos em
sentenças matemáticas corretas nos leva a várias
versões do abismo, onde o panorama aconchegante que construímos
nos devolve a esperança de um mundo matemático verdadeiro e livre
de contradições, onde
toda
verdade, e somente verdades, seriam reveladas. Os vales verdes e os
pássaros que cantam, no entanto, escondem ainda o perigo do
desconhecido. Lá, onde o horizonte azul e o infinito se transformam em
luzes, moram juntos, o desejo do sonho e a impossibilidade de sonhar.
Ao desmembrar ainda mais o nosso paradoxo, chegaríamos ao famoso
paradoxo do barbeiro:
Diz-se que lá em Sevilha, havia um barbeiro que na porta de sua casa
pendurou uma tabuleta com os dizeres:
"Faço a barba de todas e somente das pessoas que não fazem a
sua própria barba"
A pergunta:
"Quem faz a barba do barbeiro?"
nos leva novamente ao ciclo auto-contraditório dos paradoxos. Se o barbeiro faz a própria barba, como ele só faz a barba daqueles que não fazem a própria barba, então ele não faz a própria barba, mas neste caso, como ele não faz a própria barba e como ele faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba, então ele faz, paradoxalmente, a própria barba.
É importante ressaltar aqui, que matemáticamente, o paradoxo do barbeiro não existe, pois não pode haver um lugar onde viva um barbeiro com as propriedades contraditórias descritas na tabuleta que havia em sua casa. Logo Sevilha não existe, ou pelo menos lá não vive tal barbeiro.
O paradoxo de Russell transporta, inquestionavelmente, para o campo da
lógica formal e da teoria dos conjuntos o convívio promíscuo
do falso e verdadeiro:
Podemos imaginar que todas as coisas que existam, pertençam a uma entre
duas classes de objetos: as das que contém a si mesma (como por
exemplo a classe das coisas imagináveis, que em si é uma coisa
imaginável) e as das que não contém a si mesma (como por
exemplo a classe dos psicanalistas ou dos matemáticos ou das beterrabas que em si só não é nem psicanalista, nem matemático, nem beterraba).
Chamando a esta última de normal e a primeira de anormal e designando
por N o conjunto de todas as classes normais, pergunta-se: será N
normal? Bem, se N é normal então N pertence a si mesma (pois N
é o conjunto de todas as classes normais) mas se assim for, pela
definição de anormal, N é anormal e então N
não mais pertence a si mesma e conseqüentemente é . Ou
seja: N é normal se e somente se N é anormal.
Aqui, diferentemente do que no caso do barbeiro, não tivemos que imaginar um cenário fictício onde estranhos acontecimentos se passam, nem tivemos que inventar um protagonista com propriedades impossíveis. O paradoxo de Russel baseia-se apenas na noção de classe de conjuntos dentro da precisão da lógica. Se aceitarmos a noção de classe, o paradoxo fica definitivamente estabelecido. Mas lembramos, que isso ainda não é matemática.
O paradoxo de Richard elabora a mesma idéia do de Russell mas traz para
dentro do âmbito matemático, a angústia do paradoxo, mapeando a auto-contradição dentro da aritmética,
transportando inesperada e inexoravelmente para a estrutura
lógico-matemática o perigo da inconsistência que é
expressa pela existência da contradição.
Considere uma linguagem (por exemplo a nossa língua portuguesa) onde
as propriedades particulares aos números possam ser formuladas e
definidas. É claro que não poderemos definir tudo, que temos de
começar em algum lugar onde haja um prévio entendimento e que
alguns termos da aritmética serão, presumivelmente, tomados como
fazendo sentido, por exemplo os conceitos de números inteiros,
soma, produto e quociente entre dois números inteiros, os conceitos de
divisível, múltiplo, maior, menor, etc. A propriedade de ser um
número primo poderia, desta maneira, ser definida como
"divisível apenas por si mesmo e pela unidade"
, a de ser um número par como
"múltiplo de dois"
e assim por diante.
Cada uma destas definições contém um número finito
de palavras e consequentemente um número finito de letras do alfabeto,
sendo possível portanto, serem arrumadas serialmente numa lista ordenada de definições das propriedades da aritmética. Uma definição precederá a outra se o número de letras do alfabeto empregadas na sua definição, for menor do que o número de letras empregada na outra definição. No caso de duas definições empregarem o mesmo número de letras do alfabeto, o posicionamento na lista de definições será decidido baseado no critério da ordem alfabética. De posse desta lista, associaremos ao seu primeiro elemento o número
1
, ao segundo elemento da lista o número
2
, e assim sucessivamente.
Como cada definição ficará associada a um único
número inteiro, pode acontecer em certos casos que o próprio
número associado a uma certa definição possua a
propriedade descrita por ela. Por exemplo: se o número associado
à definição da propriedade de um número ser
primo
,
"divisível apenas por si mesmo e pela unidade"
, é
19
, temos claramente que ele, o
19
, possui a propriedade descrita pela expressão de número
19
. Por outro lado pode acontecer, o que deve ser inclusive mais
provável, o contrário: que o número associado à definição de uma certa propriedade da aritmética
não possua a propriedade descrita pela definição a que ele
se refere. Por exemplo: se o número associado à
definição da propriedade de um número ser
par
,
"múltiplo de dois"
é
35
, temos, também claramente, que ele o
35
, não possui a propriedade a que ele se refere, ou seja, a de ser um
número
par
.
Os números que se referem aos casos descritos no segundo exemplo,
serão chamados de Richardianos, isto é, um número
será Richardiano se ele não possuir a propriedade
aritmética descrita na definição associada a ele na lista
de definições aritméticas, confeccionadas da maneira
explicada acima. Serão NÃO Richardianos, caso contrário,
isto é, quando possuir a propriedade por ele designada na lista de
definições das propriedades aritméticas. Ufa
A propriedade de ser Richardiano passa a ser uma propriedade
aritmética(?) dos números inteiros e portanto também
terá a ela associado um número inteiro, digamos
N
.
Repetindo a pergunta do paradoxo de Russell indagaremos:
"Será N Richardiano?"
e mais uma vez, estaremos diante da antinomia:
N É Richardiano se e somente se N não é Richardiano.
Aparentemente, conseguimos construir um paradoxo dentro da aritmética,
pois toda a argumentação é reduzida a números. A
verdade não é bem essa. Ao estabelecermos as regras para a
listagem enumerada das propriedade aritméticas dos números, que
é usada na construção de Richard, nos comprometemos, pelo
menos implicitamente, a listar apenas as propriedades aritméticas,
pertencentes portanto, estritamente, à matemática e não
à metamatemática, que é o conjunto das
afirmações a respeito das sentenças estritamente
matemáticas, como veremos mais adiante. A propriedade de ser ou
não Richardiano não é uma propriedade estritamente
aritmética, pois julga a condição de um dado número
natural referente ao enunciado de uma lista construída artificialmente.
Não é de maneira alguma uma propriedade inerente ao
número. E é essa "promiscuidade" entre
matemática e metamatemática, que, em última
análise, possibilita a construção do paradoxo. Não
há trapaças, pelo menos evidentes, mas falta rigor.
O Problema da Consistência
Uma matemática consistente é uma matemática livre de
contradições.
O que esperamos, depois de mais de sei mil anos de razão, coragem e
paciência é que ao articular as "verdades"
auto-evidentes descritas pelos postulados, não desagüemos em
contradições. Devemos evitar os paradoxos que, como vimos, guardam em si um
mecanismo gerador de contradições. Podemos então, refazer a
frase inicial deste parágrafo, substituindo-a por
: uma matemática consistente é uma matemática livre de
paradoxos.
O perigo das contradições vai além do que
podemos a princípio imaginar.
É possível mostrar que num sistema lógico formal onde se
é capaz de demonstrar uma afirmação e seu contrário,
tudo é dedutível. Em outras palavras, Para nos livrarmos dos
paradoxos e provarmos a consistência de um sistema, é preciso
encontrar uma afirmação que não possa ser provada dentro
do sistema. Mas qual? Como? O que é isso?
Estamos no final do século XIX, o sucesso das matemáticas do
século XVIII levou à certeza do triunfo absoluto da razão.
A matemática era capaz de seguir e até mesmo de prever a
natureza. Já não era claro quem seguia quem, tamanho era o seu
poder, tanto do ponto de vista prático, que possibilitava, e ainda
possibilita, ao homem construir um progresso modelado ao seu capricho, quanto abstrato, que com a análise criteriosa do infinito, passa a delimitar as
expectativas e ambições da própria criação.
Estamos à porta do paraíso, resta-nos pouco para a conquista
final da glória absoluta, e este pouco que resta é o acabamento
de uma construção grandiosa: devemos varrer alguns
destroços, limpar, polir aqui e ali para inaugurarmos uma nova era que
venha a coroar merecidamente o esforço de tantos anos.
Cabia então, agora, a prova final do que já todos tinham, havia
tanto tempo, certeza: de que a matemática era livre de
contradições. E logo agora que surgiam como pragas, gerados
talvez pelo abuso e irreverência com que se mexia com o infinito,
paradoxos carregados de contradições, de todos os lados. Mas a
situação estava sob controle. Dispúnhamos dos melhores
cérebros de todos os tempos a trabalhar unidos e convictos da
possibilidade de livrar a matemática de todo paradoxo. A história
que vai desta época ao início da década de trinta é
fascinante e tem sido contada e recontada de maneira brilhante por muitos
autores. Resumimos os acontecimentos mais importantes da época em
Às portas do Paraíso, mas por ora, iremos direto aos fatos que
levaram à prova do Teorema de Gödel.
Neste contexto, verdades e falsidades serão sempre tomadas como
relativas aos fundamentos do sistema considerado. Dentro da matemática,
relacionar-se-ão aos postulados iniciais que estabelecem sua (da
matemática) axiomatização. É claro que um conceito
de falso ou verdadeiro poderá ser estabelecido fora do sistema, por
valores outros que não os inerentes à formalização
que se analisa. Serão afirmações meta-sistemáticas
que, a princípio, não interferirão no sistema, a
não ser quando solicitadas pelo próprio .
O princípio do terceiro excluído.
Este princípio, também chamado de Princípio do meio termo excluído, estabelece que uma afirmação
P
num sistema lógico formal é
"ou verdadeira ou falsa"
não podendo portanto ser nem
"falsa e verdadeira"
nem tão pouco
"nem falsa nem verdadeira"
. Estas duas proibições constituem em si mesmas o terceiro
excluído que delimita o espaço lógico das
matemáticas tradicionais.
A existência dos paradoxos com sua dinâmica contraditória
é fruto do princípio do terceiro excluído.
"Esta afirmação é falsa"
ou qualquer um dos nossas antinomias favoritas só constituem paradoxos
por
não
ser dada a elas a possibilidade de serem
nem falsas nem verdadeiras
ou de serem, ao mesmo tempo,
falsas e verdadeiras
.
No primeiro caso, se admitíssemos a possibilidade do
nem falso nem verdadeiro
, os paradoxos perderiam seu caracter contraditório para ganhar um certo
alheamento. Seriam remetidos para fora do sistema que se sentiria incapaz de
decidir sobre a veracidade ou falsidade da afirmação considerada.
O preço de nos livrarmos dos paradoxos seria o reconhecimento, por
parte do próprio sistema, de suas próprias
limitações. Há afirmações geradas pelo
próprio sistema sobre as quais este não tem competência
para opinar.
No segundo caso, admitindo desta vez a possibilidade
do falso e verdadeiro
, incorporaríamos as contradições dentro do sistema.
Paradoxos não mais seriam sintomas de um mal funcionamento deste sistema
que, por outro lado, não mais poderia decidir sobre verdades e
falsidades das afirmações por ele geradas.
As soluções da lógica.
Se o paradoxo é o problema que devemos evitar, podemos atacar
diretamente na lógica. Basta substituirmos a dupla
proibição do princípio do terceiro excluído por
uma de suas duas possíveis negações.
A lógica paraconsistente.
Quando substituímos a dupla proibição do princípio
do terceiro excluído apenas pela segunda delas, relaxando a
proibição de uma afirmação ser
"falsa e verdadeira"
mas mantendo o impedimento quanto à possibilidade de uma
afirmação vir a ser
"nem falsa nem verdadeira"
, obtemos a chamada Lógica paraconsistente, lugar onde as
contradições podem existir e ser articuladas e onde não
existe o desejo imperativo da consistência. É a lógica
possível para os paradoxos e, talvez, a mais adequada para modelar a
complexidade do homem nos limites da sua razão.
A lógica paracompleta.
Se desta vez mantemos a proibição da possibilidade de
"falso e verdadeiro"
mas permitindo o surgimento de uma terceira via,
"nem falso nem verdadeiro",
obtemos a lógica paracompleta onde não há
esperanças de que verdades surjam para dar sentido. Aqui, nem Deus nem
Dante existirão pela simples impossibilidade de viver sem eles.
Não há provas por contradição, simplesmente porque
não há contradições. Morada dos
indecidíveis, a lógica paracompleta dá
sustentação a uma matemática intuicionista que busca na
natureza a resposta para suas questões fundamentais.
O indecidível e a matemática.
Embora tentados pela matemática intuicionista, que nos livraria do
problema qualificando-o como não existente, nos livrando desta maneira
do sintoma do paradoxo, optamos por uma outra abordagem. Queremos preservar a
potência e a vastidão de resultados que a matemática
fundada na teoria cantoriana dos conjuntos nos legou, e resolvemos descobrir os
verdadeiros limites deste modelo e desta opção. Os paradoxos
indicarão o limite dos nossos sistemas se não quisermos
contradições. Há que evitá-los. E como
fazê-lo? Gödel mostra com seus teoremas que a
aparição de paradoxos na matemática é
inevitável. Para manter a consistência desejada temos de
expulsá-los do sistema, não com a autoridade policial, mas com a
humildade intelectual de reconhecer as próprias limitações de um sistema que não saberá julgar se verdadeiro ou falso, as
afirmações veiculadas nos paradoxos. Estes se tornarão
indecidíveis
e serão responsáveis pela consistência do sistema
matemático.
O preço de consistência é a existência de
indecidíveis.
A afirmação indecidível no sistema matemático
não pode ser avaliada como falsa ou verdadeira dentro do próprio
sistema, mas só por um agente exterior. Chamaremos de
Metamatemática
o conjunto das articulações sobre os conceitos da
matemática propriamente ditos. Por exemplo: as fórmulas
"0=1"
ou
"5=2+3"
pertencem a matemática, mas as afirmações
"a equação "0=1"é falsa"
ou
"a equação "5=2+3" é verdadeira"
pertencem a metamatemática. Na construção do paradoxo de
Richard, as propriedades de um dado número inteiro ser ou não
primo, ou múltiplo de 2, é uma propriedade de aritmética e,
portanto, pertence a matemática, enquanto a propriedade de um dado
número ser ou não richardiano já não pertence mais
à matemática, pois não é, como já dissemos,
uma propriedade própria do número em si, mas sim de sua
posição relativa a uma lista artificialmente construída.
Considerando a afirmação matemática
P
, a afirmação
"P
pode ser (ou não pode ser) demonstrada"
também pertence a metamatemática, muito embora a sua prova ou
contraprova sejam da alçada da matemática. Será apenas a
metamatemática que poderá opinar sobre a verdade ou falsidade de
um indecidível, sua opinião será sempre baseada numa
lógica mais abrangente e menos restritiva do que a adotada para o
sistema matemático.
A Prova de Gödel
Há uma diferença muito grande entre um raciocínio que se elabora com as palavras do cotidiano, como fizemos acima, usando, como na filosofia, a linguagem corrente como veículo, e um raciocínio codificado numa linguagem a mais isenta possível, como o que se dá na matemática. A diferença não é como pode parecer a principio, qualitativa ou mesmo quantitativa, do ponto de vista da expectativa do raciocínio. O lugar aonde nos leva a idéia é o lugar aonde ela nos leva, independente de como a veiculamos, desde
que sejamos imparciais e que sigamos as regras lógicas pré
estabelecidas com rigor. A questão é de operacionalidade. A
matemática, com sua linguagem tentativamente imparcial é o lugar
da articulação lógica por excelência, foi
desenvolvida com esta finalidade e esta é a razão do seu (da
matemática é claro) retumbante sucesso. A questão
não é saber se iremos mais ou menos longe (certamente menos) com
ela, mas criarmos condições de caminharmos com menos medo. Se e aonde conseguirmos chegar, estaremos confiantes de lá termos chegado sem que tivéssemos sido conduzidos pelas mãos da ilusão entre vírgulas ou entre palavras. A matemática não tem o poder imaginado no final do século XIX, mas ainda proporciona um caminhar seguro pelos labirintos espirais do conhecimento.
Será possível reconstruir a estratégia da conquista da consistência que esboçamos acima, dentro da própria matemática?
Será possível encontrar uma afirmação que
não possa ser provada dentro do sistema?
Esta é a epopéia descrita pela prova de Gödel.
Para começar, a idéia básica é a de mapear toda a matemática para dentro da aritmética. Com isso, qualquer
questão aritmética fica reduzida à sua contrapartida na aritmética. A aritmética é a escolhida por ser o ramo da
matemática onde se sofre menos interferência da intuição e do desejo. Não há desenhos nem analogias com a natureza para guiar o raciocínio, que passa a se valer apenas das possíveis inserções lógicas. Este trabalho de mapeamento foi resolvido por Hilbert no início deste século. Gödel queria também mapear a metamatemática para dentro da aritmética, para poder classificar aritméticamente as afirmações acerca dos resultados matemáticos. Com isso evitaria a tal "promiscuidade" entre matemática e metamatemática que ocorre no paradoxo de Richard, contornando o que restava de trapaça na construção dos paradoxos. Para isso criou uma numeração que leva o seu nome e que em si é de uma grande engenhosidade.
O número de Gödel.
Para criar uma linguagem estritamente numérica, capaz de descrever e
articular os resultados matemáticos, Gödel construiu um sistema que
associa a cada símbolo (usado na escrita matemática) um
único número natural. Passa então a numerar, de maneira
única, todas as fórmulas e também as
considerações metamatemáticas que ele necessita para lidar
com paradoxos. A numeração segue a seguinte estratégia:
Sinais
|
Número de Gödel
|
Significado
|
~
|
1
|
não
|
v
|
2
|
ou
|
®
|
3
|
se
então
|
$
|
4
|
existe
|
=
|
5
|
igual
|
0
|
6
|
zero
|
s
|
7
|
sucessor
|
(
|
8
|
pontuação
|
)
|
9
|
pontuação
|
,
|
10
|
pontuação
|
Além destes símbolos básicos, Gödel prossegue a sua
numeração associando os números primos maiores que dez
às variáveis independentes:
Variável
|
Número de Gödel
|
x
|
11
|
y
|
13
|
z
|
17
|
As fórmulas matemáticas, seriam numerada pelos quadrados dos primos maiores do que dez:
Fórmulas
|
Número de Gödel
|
p
|
11
2
|
q
|
13
2
|
r
|
17
2
|
As propriedades dos números também poderiam ser numeradas pelo
cubo dos primos maiores do que dez, e etc.
Com o auxílio desta numeração, Gödel construiu uma
maneira única de associar um número a uma sentença
matemática. Toda sentença teria um único número que
poderia, depois, ser recuperado e transformado novamente naquela
sentença que o originou. Aqui está a genialidade desta
numeração. Veja no exemplo da sentença abaixo que diz:
"Existe um x que é o sucessor de y".
(
$
x ) ( x = s y )
Sua numeração nos leva a:
(
|
$
|
x
|
)
|
(
|
x
|
=
|
s
|
y
|
)
|
¯
|
¯
|
¯
|
¯
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¯
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¯
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¯
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¯
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¯
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¯
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8
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4
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11
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9
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8
|
11
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5
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7
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13
|
9
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Para solucionar o problema de transformar os diversos números dos
diversos símbolos em um único numero que representasse a
fórmula completa, Gödel teve a idéia genial de usar cada
número como o expoente dos números primos em seqüência.
Temos então para a fórmula acima o seguinte número:
2
5
x3
4
x 5
11
x 7
9
x 11
8
x 13
11
x 17
5
x 19
7
x 23
13
x 29
9
que é um número que pode ser calculado (embora muito grande) e
que representa unicamente a fórmula
(
$
x ) ( x = s y )
.
De maneira inversa, dado um número, podemos imediatamente descobrir se
ele é ou não um número de Gödel, bastando para isso
decompo-lo nos seus fatores primos e verificar se esta
decomposição contém todos os primos em
seqüência de 2 até um certo n que será o número
primo de ordem igual ao número de símbolos utilizado na escrita
da fórmula matemática. Por ex: 100 não é um
número de Gödel pois sua decomposição em fatores
primos nos dá:
2 x 2 x 5 x 5
que não contém o númeral 3 quebrando a
seqüência de primos necessária que seria
2,3,5.
Já 1500 é um número de Gödel pois sua decomposição em fatores primos é:
2x2x3x5x5x5 = 2
2
x 3
1
x 5
3
que nos fornece (após consulta na tabela de símbolos) o
significado matemático do número 1500, que é:
"ou não implica"
.
Observe que a fórmula matemática encontrada não tem que
fazer sentido, tendo apenas que ser possível dentro da escrita
matemática. Experimente verificar se a sua idade é ou não
um número de Gödel. A minha, 48, é; e significa
$
~
.
Isto é:
"existe não",
o que embora não faça sentido, me fez entender coisas nenhumas.
A construção de um indecidível.
Seguindo estes passos Gödel consegue numerar (i.e, dar um número de
Gödel) fórmulas do tipo:
p
®
q
que representam provas matemáticas que podem ser lidas como
"a fórmula p é a demonstração da
fórmula q".
Esse novo número conterá, na sua decomposição
única em fatores primos, as respectivas decomposições dos
números referentes às fórmulas
p
e
q
separadamente, que poderão ser recuperados para a
identificação de
p
e
q
e estarão relacionados pelo número do símbolo de
implicação
®
.
Desta maneira a afirmação metamatemática
"a fórmula p é a demonstração da
fórmula q"
fica mapeada definitivamente dentro da aritmética e passa a ser parte
do sistema em estudo, podendo então ser articulada sem subjetividade
através do exame da numeração estabelecida. Se os
números de Gödel das fórmulas
p
e
q
são
x
e
y
, respectivamente podemos criar uma nova fórmula que traduz esta prova e
que será representada simbolicamente por:
Dem(x,y)
que deve ser lida da seguinte maneira: o conjunto de fórmulas cujo
número de Gödel é
x
é uma prova da fórmula cujo número de Gödel é
y
. A fórmula
Dem (x,y)
terá também o seu número de Gödel, assim como a
fórmula
~Dem (x,y)
que expressa que a fórmula, ou o conjunto de fórmulas, com o
número de Gödel
x
não é uma prova da fórmula com o número de
Gödel
y
.
Agora a tentativa é a de reproduzir dentro da aritmética o
paradoxo de Richard construindo uma sentença matemática auto
referente e auto excludente, mas evitando as imprecisões nele contidas.
Construir um paradoxo na tentativa de provar que algo existe que não
pode ser provado.
A princípio bastaria a fórmula
$
y (x)~Dem(x,y)
que afirma que existe uma fórmula cujo número de Gödel
é
y
tal que para qualquer
x
(qualquer conjunto de formulas) vale
~Dem(x,y)
(não é uma prova para a fórmula de número de
Gödel
y
). Ou seja, existe uma fórmula que não pode ser provada, que
é o que queremos. Na verdade a existência pura e simples desta
fórmula não implica a existência de uma
afirmação matemática, dentro do sistema, que não
possa ser provado, pois a fórmula
$
y ~Dem(x,y)
pode ser falsa, isto é, pode acontecer de não haver formula
alguma dentro da matemática com o número de Gödel igual a
y
e tal que valha
(x)~Dem(x,y);
a não ser que ela em si seja demonstrável.
Chamaremos de
G(y)
ao número de Gödel referente à fórmula
(x)~Dem(x,y).
Observe que o índice
y
representa uma dependência do número de Gödel associado
à formula
(x)~Dem(x,y
), isto é,
G(y)
, com a fórmula cujo número de Gödel é igual a
y
.
Desta maneira,
para cada
y
teremos um novo número
G(y)
. Gödel foi capaz de mostrar ( e esta é a passagem mais delicada e
complicada de sua demonstração) que a função
G
tem um ponto fixo, isto é, que a equação
G(y)=y
tem solução. Em outras palavras, que a fórmula cujo
número de Gödel é
y
e que portanto não pode ser demonstrada é a própria
(x)~Dem(x,y)
, ou se preferirmos,
(x)~Dem(x,G(y))
, o que dá no mesmo. Finalmente construímos a fórmula
desejada:
$
y (x)~Dem(x,y)
com
y=G(y)
. "A fórmula de número de Gödel
y
(que sou eu mesma) não pode ser demonstrada".
"Eu não posso ser demonstrada",
que é o indecidível desejado.
Observe que a fórmula que não pode ser demonstrada é
"que existe uma fórmula que não pode ser demoinstrada"
. É isso!
A seguir analisaremos as conclusões da construção do
indecidível que resumidamente são:
1-Se a matemática é consistente, sua consistência
não pode ser provada dentro da própria matemática.
2-Se a matemática é consistente ela é incompleta ( existem
indecidíveis).
Interpretação dos resultados .
O que verificamos na sessão anterior, tem conseqüências impressionantes, no que se refere aos fundamentos da matemática.
Recordando o conceito de consistência temos: a matemática é
consistente se ela for livre de contradições, isto é,
livre de paradoxos, caso contrário ela será inconsistente.
Neste ponto precisamos definir o conceito de
Completitude.
Chamaremos um sistema de
completo
se ele for capaz de provar ou contraprovar qualquer de suas
afirmações, isto é, se ele for livre de
indecidíveis. Caso contrário, o sistema será incompleto.
Um sistema incompleto, no qual foi detectado um indecidível, pode ser
parcialmente completado pela introdução, de fora para dentro, de
um novo postulado para o sistema, capaz de decidir sobre a verdade ou falsidade do indecidível em questão. O sistema assim ampliado, estará curado da mazela a ele infligida pelo surgimento do
indecidível, mas não estará livre de modo algum, e este
é um ponto fundamental na prova de Gödel, do aparecimento de novos indecidíveis, como veremos a seguir.
Primeiro podemos observar que o que construímos foi uma fórmula
que diz de si mesmo: "
Eu não posso ser provada
" e que tem a estrutura paradoxal de ser verdadeira se e somente se for falsa. Vejamos: se
(x)~Dem(x,G(y))
for verdadeira, isto é, demonstrável dentro do sistema como uma
verdade do sistema, como ela diz de si mesmo que não pode ser
demonstrada, ela será falsa, mas se falsa, isto é, se ela
não puder ser demonstrada dentro do sistema como uma verdade do sistema,
pelo princípio do terceiro excluído, valerá a sua
negação que atesta que ela pode, sim, ser demonstrada e que
portanto, é verdadeira.
Estamos em pleno paradoxo, a não ser que o sistema se declare impotente
quanto a decidir se a fórmula em questão é verdadeira ou
falsa.
"Ou o paradoxo ou o indecidível"
Primeira conclusão.
Como, para que a matemática, no caso a aritmética, continue a
ser útil a si própria e a sociedade, não podemos abrir
mão de sua consistência, concluímos que ela
inexoravelmente, produzirá indecidíveis. Estes, como tal, devem
ser localizados do lado de fora do sistema, num lugar onde já não
valha o princípio do terceiro excluído, sob pena de introduzir
dentro do próprio sistema uma contradição e com isso
trazer de volta a inconsistência que não podemos nem queremos
suportar. Conseqüentemente, há de haver afirmações
matemáticas que não podem ser provadas dentro do sistema, que
não será então capaz de provar ou contraprovar todas as
suas afirmações, isto é, ele será incompleto. A
aritmética, se consistente, tem que ser incompleta. Temos:
"O preço da consistência é a incompletitude".
Diante de tal incompletitude, isto é, do paradoxo expulso, transformado
em indecidível, e que portanto não pode ser provado dentro do
sistema, é possível, mesmo assim, a tomada de uma decisão.
Usando ferramentas meta-sistemáticas poderemos ser capazes de julgar
como verdadeiro ou falso a afirmação contida na fórmula
indecidível e, introduzi-la dentro do sistema, ou como verdadeira ou
como falsa por meio de um novo postulado anexado ao sistema. Desta maneira,
por um preço relativamente baixo, qual seja, o de introduzir um novo
postulado na axiomatização do sistema, nos livramos do fantasma
do indecidível. A matemática é cheia de exemplos deste
tipo. O famoso
"quinto postulado de Euclides"
da geometria plana, que afirma a unicidade das paralelas foi, durante mais de
dois mil anos, uma conjectura que deveria ser provada através de uma
geometria que só utilizasse os quatro primeiros postulados. Com o
surgimento, numa das passagens mais belas da história da
matemática, das chamadas geometrias não euclidianas, ver
, que mostram
a independência deste resultado. Ele se torna um indecidível e
é reintroduzido na geometria como o quinto postulado.
Poderíamos nos sentir felizes, pela possibilidade de completamento da
matemática, mas, os resultados de Gödel não permitem nem
essa alegria momentânea. Se analisarmos com calma o que
construímos na sessão anterior, veremos que o surgimento do
indecidível não depende do sistema considerado, desde que ele
seja grande o suficiente para conter a aritmética. A
introdução de um novo postulado não o "salva" .
Muito pelo contrário, só sistemas pequenos poderiam estar livres
tanto de paradoxos como de indecidíveis, e estes sistemas não
seriam capazes de investigar os estranhos caminhos do infinito, como faz a
matemática e em particular a aritméica. Ao completarmos o
sistema, outros indecidíveis aparecerão. Eles são
inevitáveis. Finalmente temos:
"O preço da consistência é a eterna
incompletitude".
Segunda conclusão:
Na busca da consistência do sistema, isto é, na
construção da fórmula
$
y (x)~Dem(x,y)
, acabamos nos fixando em uma fórmula predecessora desta, que afirma a
impossibilidade de se demonstrar dentro do sistema uma outra fórmula
cujo número de Gödel é igual a
y
, ou seja,
(x)~Dem(x,y)
. Designando por
G(y)
o número de Gödel associado a esta fórmula e usando um
argumento de ponto fixo, foi possível construir o indecidível
através da fórmula
(x)~Dem(x,G(y))
que diz, repetidamente de si mesma, que não pode ser demonstrada.
Finalmente, foi possível concluir que
"se a matemática é consistente
(livre de paradoxos)
então ela é incompleta"
. Em linguagem matemática esta afirmação pode ser
traduzida como:
$
y (x)~Dem(x,y)
®
(x)~Dem(x,G(y))
,
já que a primeira parte afirma a consistência do sistema,
enquanto que a segunda parte a existência do indecidível, que
é equivalente à sua incompletitude. Examinando a fórmula
acima, concluímos que, se pudermos demonstrar a existência de pelo
menos uma fórmula que não pode ser demonstrada, estaremos
demonstrando também a fórmula específica que assegura a
existência de um indecidível e que, como já vimos
não pode ser demonstrada. É a segunda conclusão dos
teoremas de Gödel que surge clara em nossa frente:
"Se o sistema é consistente,
sua consistência não pode ser demonstrada dentro do sistema".
Observe que, caso contrário, poderíamos demonstrar a
fórmula
$
y (x)~Dem(x,y)
que implicaria a demonstração da fórmula
(x)~Dem(xG(y))
que, como já vimos, para manter a consistência do sistema,
não pode ser nem provada nem contraprovada. Como as fórmulas
acima referem-se a afirmações da metamatemática mapeada
dentro da aritmética pela numeração de Gödel, podemos
finalmente concluir que:
"Se o sistema matemático é consistente,
sua consistência não pode ser demonstrada
mesmo por uma metamatemática
que seja mapeada dentro do sistema".
Mais precisamente, temos:
"Se a aritmética é consistente,
sua consistência não pode ser determinada
por nenhum argumento metamatemático
que possa ser representado dentro do formalismo aritmético".
Esta conclusão surpreendente não anula, no entanto, a
possibilidade de que algum argumento metamatemático, fora completamente
do sistema, possa provar a consistência da aritmética. O que
temos é que o sistema em si, ou alguma extensão sua que possa ser
nele mapeado, não é capaz de provar a sua própria
consistência.
Referências:
A principal fonte de inspiração para estas notas foi o
belíssimo texto de E. Nagel e J. R. Newman
"Gödel's Proof"
New York University Press New Ypork USA 1958. Alem dele, as referências
contidas em
Matemática & Psicanálise são todas pertinente ao estudo da prova de Gödel.